J.K. Rowling e transfobia: por que a escritora de Harry Potter tem sido cancelada?
A Sra. J.K. Rowling, de Edimburgo, Escócia, se orgulhava de dizer que era perfeitamente empática, muito bem, obrigade. Era a última pessoa no mundo que se esperaria que se metesse em alguma coisa preconceituosa ou desumanizante, porque simplesmente não compactuava com esse tipo de atitude.
Mas aqui estamos. Ano após ano, várias curtidas, declarações e conteúdos transfóbicos inundaram as redes sociais da criadora de Harry Potter e Animais Fantásticos, colocando-a no centro de intensos debates sobre feminismo e transfobia.
Se você não estava sabendo dessa, veio ao lugar certo! A seguir, compilamos um (não-tão) breve histórico das principais manifestações transfóbicas de J.K. Rowling — até agora…
Indícios
Embora sua primeira declaração explicitamente transfóbica ocorreu em 2019, J.K. Rowling teve sua atenção chamada por fãs em pelo menos dois momentos anteriores devido a curtidas em conteúdos de cunho transfóbico.
Apenas um ano antes da estreia de Animais Fantásticos: os Crimes de Grindelwald, pessoas que seguiam a escritora se depararam com um artigo intitulado Me too, e agora? (sexo, a esquerda e identidade de gênero) em suas linhas do tempo do Twitter. O motivo? Rowling havia curtido a publicação que acabou sendo distribuída para quem a seguia.
O artigo ataca as mudanças no Ato de Reconhecimento de Gênero do Reino Unido, que passaria a identificar mulheres trans como mulheres e permitiria seu acesso a espaços exclusivos para mulheres, como banheiros femininos. Em contrapartida, a autora do artigo equipara mulheres trans a homens e afirma que a entrada delas nesses locais colocaria mulheres cis em risco.
Na época, Rowling afirmou que só curtiu o artigo para salvá-lo e ler depois.
Mas essa não foi a única curtida que causou polêmica na conta de J.K. Rowling. A mesma interseccionalidade entre identidade de gênero e política foi vista em outro tweet curtido pela escritora, dessa vez com uma declaração transfóbica ainda menos velada. Na publicação, que não está mais disponível, a usuária explicitamente se refere a mulheres trans como “homens de vestido”.
Wingardium transphobia @jk_rowling pic.twitter.com/s6cJ2rIr6A
— Philip “PJ” Ellis (@Philip_Ellis) March 21, 2018
“Homens de vestido ganham a simpatia dos esquerdomachos que eu nunca tive. Isso é misoginia!”, escreveu a usuária.
Como resposta, Rowling e sua equipe classificaram o ocorrido como um “momento de meia-idade” (sic) e que a curtida ocorreu por engano. “Esta não é a primeira vez que ela segura o telefone incorretamente”, afirmou seu representante ao portal de notícias queer PinkNews.
Os dois casos, embora não contassem com posições diretas por parte de Rowling, foram suficientes para que a internet especulasse se, afinal, a criadora do Mundo Bruxo era transfóbica.
A resposta definitiva veio no ano seguinte.
O caso Maya Forstater
Maya Forstater não aceitou sua demissão do Center for Global Development. Em outubro de 2018, colegas de trabalho reportaram a então pesquisadora por criar um ambiente de trabalho hostil devido a várias declarações transfóbicas fora e dentro da ONG.
“Me disseram que é ofensivo dizer que “mulheres trans são homens” (…). Entretanto, como essa afirmação é verdadeira, continuarei a dizê-la”, escreveu Forstater após uma investigação sobre sua conduta ter início.
Não tardou para que fossem encontradas evidências que corroboravam as acusações. Em seu perfil no Twitter, Forstater realizou diversas postagens em oposição às mudanças no Ato de Reconhecimento de Gênero, tratando mulheres trans como homens, além de atacar pessoas trans ou não-binárias de destaque.
I share the concerns of @fairplaywomen that radically expanding the legal definition of ‘women’ so that it can include both males and females makes it a meaningless concept, and will undermine women’s rights & protections for vulnerable women & girls.
— Maya Forstater (@MForstater) September 2, 2018
Eu compartilho das preocupações da @fairplaywomen de que que expandir radicalmente a definição legal de ‘mulheres’ para que possa incluir homens e mulheres a torna um conceito sem sentido e prejudicará os direitos e a proteção para mulheres e meninas vulneráveis.
Conforme apurou a NBC News, essas e outras declarações, muitas delas reproduzidas nos canais de comunicação internos da ONG, levaram o Center for Global Development a não renovar o contrato de Forstater quando este expirou em dezembro daquele ano.
Forstater levou o caso à justiça, clamando que sua ideia de gênero como algo biológico e imutável é uma filosofia pessoal protegida pela lei. Ao mesmo tempo, continuou a disparar conteúdos transfóbicos nas redes sociais, como comparar o uso correto de pronomes ao roupinol, droga comumente utilizada para sedar vítimas de estupro.
O resultado do julgamento foi publicado no final de 2019 e considerou que “as crenças específicas que a Reclamante mantém (…) não são crenças filosóficas protegidas pela Lei”.
A ONG pró direitos LGBTQIA+ Stonewall, em comentário para a CNN, afirmou que o caso envolvia a importância do respeito e da dignidade no ambiente de trabalho, e que Forstater poderia expressar seu descontentamento com as mudanças no Ato sem atacar a identidade de mulheres trans.
O caso chamou a atenção de J.K. Rowling, que utilizou seu perfil no Twitter para expressar apoio a Forstater dias após o resultado vir a público, comentando que a ex-pesquisadora havia sido demitida por “dizer que o sexo é real”.
Dress however you please.
Call yourself whatever you like.
Sleep with any consenting adult who’ll have you.
Live your best life in peace and security.
But force women out of their jobs for stating that sex is real? #IStandWithMaya #ThisIsNotADrill— J.K. Rowling (@jk_rowling) December 19, 2019
Esse comentário se tornou a primeira de várias declarações transfóbicas de Rowling e deu fôlego a uma campanha pró-Forstater, que conseguiu reverter a decisão judicial a seu favor em 2021, quando ganhou uma ação movida no Tribunal de Apelações.
O apoio de Rowling a Forstater também marcou o início de uma narrativa sustentada pela escritora de que o movimento trans “está pressionando para corroer a definição legal de sexo e substituí-la por gênero”, como escreveria em seu site no ano seguinte.
Em abril de 2022, poucos dias antes da estreia de Animais Fantásticos: os Segredos de Dumbledore, Rowling e Forstater se conheceram pessoalmente em um almoço organizado pela escritora de Harry Potter com outras ativistas consideradas TERFs (acrônimo para feministas radicais trans-excludentes). O encontro foi noticiado pelo tablóide britânico The Times, em publicação com o título J.K. Rowling se junta a mulheres que almoçam e riem da fúria trans.
Sexo vs. gênero
J.K. Rowling voltou a comentar sobre a comunidade trans durante os primeiros meses da pandemia do novo Coronavírus. Em maio de 2020, enquanto se preparava para lançar seu primeiro livro infanto-juvenil desde o fim de Harry Potter, Rowling compartilhou um editorial do Devex intitulado Criando um mundo mais igual pós-COVID para pessoas que menstruam.
O ataque se concentrou no uso da expressão “pessoas que menstruam”, sugerindo que ela deveria ser substituída por mulheres. Quando fãs, pessoas seguidoras e outres usuáries apontaram que seu comentário excluía homens trans que também menstruam, Rowling respondeu que “eliminar o conceito de sexo remove a habilidade de muitas pessoas de discutir sobre suas vidas”.
A resposta causou um grande estrondo nas redes e levou parte do elenco de suas sagas a se posicionar.
Emma Watson, intérprete de Hermione Granger e defensora da causa feminista, publicou uma mensagem de apoio à comunidade trans em seu perfil no Twitter: “pessoas trans deveriam viver sem ser constantemente questionadas ou ouvirem que não são quem dizem ser”.
I want my trans followers to know that I and so many other people around the world see you, respect you and love you for who you are.
— Emma Watson (@EmmaWatson) June 10, 2020
Daniel Radcliffe (Harry Potter), Katie Leung (Cho Chang), Eddie Redmayne (Newt Scamander), Evanna Lynch (Luna Lovegood), Bonnie Wright (Gina Weasley) e Chris Rankin (Percy Weasley) também se opuseram às falas de Rowling.
Como resposta às críticas, Rowling publicou um longo texto-desabafo em seu site, no qual justifica seu posicionamento transfóbico pela substituição do conceito de sexo — que se refere principalmente a diferenças biológicas entre homens e mulheres — pelo de gênero — construções sociais que refletem a identidade de uma pessoa ou grupo de pessoas —, por ter “grandes preocupações sobre como o movimento trans afeta [a educação e a segurança de crianças]”, e por defender “a liberdade de expressão”.
O texto foi rechaçado por fãs, ativistas e pessoas públicas.
Ano novo, transfobia de novo
Nos últimos anos, comentários transfóbicos de Rowling continuam sendo publicados em suas redes sociais com certa frequência, e os vários novos casos levaram a escritora a vários novos cancelamentos por (ex-) fãs, ativistas e até mesmo celebridades.
Um desses casos ocorreu no final de 2021, quando a polícia escocesa anunciou que pessoas acusadas de estupro poderiam se identificar como mulheres. Essa identificação, entretanto, não retira acusações nem alivia penas no caso de condenação.
Rowling voltou ao Twitter para debochar da nova lei. “O indivíduo com pênis é uma mulher”, escreveu.
Já em 2022, o primeiro alvo de J.K. Rowling foi a Secretária de Estado das Mulheres e de Igualdade do Partido Trabalhista, Anneliese Dodds.
Quando perguntada sobre como definiria uma mulher durante entrevista à BBC no Dia Internacional da Mulher, a política respondeu que não sabia dizer. Rowling, então, fez novas declarações no Twitter e teve como resposta um “cale a boca” da cantora Tinashe.
Oh my god, SHUT UP
— TINASHE ³³³ (@Tinashe) March 8, 2022
Legado
É difícil mensurar o impacto das declarações de J.K. Rowling sobre a comunidade e o ativismo trans. Sabe-se que, apesar dos ataques constantes, o número de pessoas seguidoras de Rowling no Twitter continua a crescer.
Em artigo para o Vox, Katelyn Burns escreve que a transfobia de J.K. Rowling é resultado da cultura britânica. “O TERFismo se espalhou tanto no Reino Unido que muitos especialistas até culparam a esmagadora vitória dos conservadores (…) às pessoas trans, alegando que as questões trans são apenas um produto hiper-acordado de uma esquerda política que simplesmente foi longe demais”, conta.
Casos de transfobia também não são exclusivos do Reino Unido. No Brasil, uma pessoa trans foi assassinada a cada 62 horas em 2021, conforme levantamento da ANTRA.
Em 2019, uma decisão histórica do STF equiparou casos de LGBTfobia ao crime de racismo, pondo fim à ideia conservadora de que transfobia não passa de liberdade de expressão. Em seu voto, o relator do projeto no Supremo, ministro Celso de Mello, argumentou que pronunciamentos que estimulam o preconceito “não merecem a dignidade da proteção constitucional que assegura a liberdade de expressão do pensamento”.